Dos Canibais
Um dos textos fundadores do moderno relativismo cultural:
"Tive muito tempo comigo um homem que havia residido uns dez
ou doze anos nessoutro mundo descoberto no nosso século, no lugar onde
Villegagnon desembarcou e a que deu o nome de França Antárctica [Brasil]. Esta
descoberta de um infindo país parece ser de importância considerável (…).
Aquele homem que eu
tinha ao meu serviço era simples e rude, o que constitui uma condição
apropriada à prestação de testemunhos verídicos, pois as pessoas de espírito
fino observam mais coisas e com bem mais minúcia, mas glosam-nas, e, para fazer
valer a sua interpretação e a tornarem mais persuasiva, não conseguem abster-se
de alterar um pouco a história: elas nunca vos apresentam as coisas em seu
estado puro, deformam-nas e mascaram-nas em conformidade com a perspectiva sob
a qual a viram, e, para darem crédito aos seus juízos e atrair-vos a eles, de
bom grado acrescentam matéria que os confirme, e esticam-na e amplificam-na. O
que se quer é um homem fidelíssimo aos factos, ou um tão simples que não tenha
com que construir falsas invenções e lhes conferir verosimilhança, e que não
tome nenhum partido (…).
Acho que, a avaliar
pelo que me contaram a seu respeito, nada há de bárbaro ou de selvagem naquele
povo [os índios do Brasil]; só que cada um chama bárbaro ao que não está de
acordo com os seus hábitos; e, na verdade, parece que não temos outro critério
de verdade e de razão que o exemplo e o ideal das opiniões e usos do país onde
estamos. É aí que sempre se acha a religião perfeita, o governo perfeito e a
perfeita e acabada maneira de fazer todas as coisas. São eles selvagens, tal
como selvagens são por nós chamados os frutos que a natureza, no seu curso
ordinário, produz por si, quando, em boa verdade, são antes os frutos que
artificialmente alterámos e que desviámos da ordem geral que devíamos apelidar
de selvagens (…).
Aqueles povos só me
parecem, pois, bárbaros, na medida em que foram muito pouco modelados pelo
espírito humano e se acham ainda muito próximos do seu primeiro estado natural.
Ainda os comandam as leis da natureza, muito pouco abastardadas pelas humanas,
e a sua pureza é tal que por vezes me vem um grande desgosto por eles não nos
terem chegado ao conhecimento antes, nos tempos em que havia homens capazes de
melhor os julgar que nós. É uma nação (…) na qual não há nenhuma espécie de
comércio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos números; nenhum
vocábulo que designe cargos públicos ou uma qualquer superioridade política;
nenhuma prática de servidão, riqueza ou pobreza; nenhuns contratos; nenhumas
sucessões ou partilhas; nenhumas ocupações a não ser as do ócio; nenhuma
consideração de parentesco excepto daquele que liga todos os membros da
comunidade; nenhum vestuário; nenhuma agricultura; nenhum metal; e nenhum
consumo de vinho ou de trigo. As próprias palavras que nomeiam a mentira, a
traição, a dissimulação, a cobiça, a inveja, a detracção e o perdão são-lhe
inauditas (…).
Quanto ao mais, vivem
eles numa região muito aprazível e de óptimo clima, de maneira que, segundo o
que disseram as minhas testemunhas, raro é de lá se ver um homem doente, também
me sendo assegurado não se ter visto ninguém tremente, remeloso, desdentado ou
curvado por causa da velhice (…).
Passam todo o dia a
dançar. Os mais jovens vão à caça de arco e flecha. Uma parte das mulheres,
entretanto, tratam de lhes aquecer a beberagem, o que constitui a sua ocupação
principal. De manhã, antes de se porem a comer, um dos anciãos prega a todos os
do seu barracão, percorrendo-o de uma ponta a outra, a repetir a mesma frase
vezes sem conto até acabar de dar a volta, pois são edifícios com uns bons cem
passos de comprido. Não lhes recomenda ele senão duas coisas: valentia face aos
inimigos e amizade para com as mulheres (…).
Crêem que as almas
são eternas e que aquelas que merecem ser recompensadas pelos deuses residem no
lugar do céu onde o Sol nasce, e as malditas no poente.
Eles têm não sei que
sacerdotes e profetas que mui raramente se apresentam em público e que moram
nas montanhas. À sua chegada celebra-se uma grande festividade, reunindo-se uma
assembleia solene de várias aldeias (…). O profeta fala então a todos,
exortando-os à virtude e ao dever, posto que toda a ciência ética deles se
cinja àqueles dois artigos: bravura na guerra e afeição às mulheres.
Prognostica-lhes ele as coisas vindouras assim como os resultados que devem esperar
das suas empresas, e incita-os à guerra ou dela os dissuade (…).
Têm eles as suas
guerras contra as nações do lado de lá das montanhas do interior (…). Espantosa
é a firmeza com que se comportam nos combates, que nunca acabam sem matança e
grande efusão de sangue, pois não sabem que coisas são a retirada e o pânico.
Cada um traz como troféu a cabeça do inimigo que matou e pendura-a à entrada da
sua residência. Depois de um longo período em que tratam bem os prisioneiros,
provendo-os de todas as comodidades (…) trucidam-no à espadeirada. Isto feito,
assam-no e todos juntos o comem, nãos em reservar uns bocados para enviar aos
amigos ausentes. Ao contrário do que vulgarmente se julga, não procedem assim
para se alimentarem (…) mas para exprimir uma superlativa vingança (…).
O que, porém, nunca
entre eles se viu foi uma opinião tão desregrada que justificasse a traição, a
deslealdade, a tirania e a crueldade, vícios vulgares entre nós.
Podemos, pois, chamar
bárbaros a esses povos face à razão mas não face a nós, que os ultrapassamos em
toda a sorte de barbárie (…) Ainda se encontram naquele bem-aventurado estado
de nada desejar além do que as necessidades naturais requerem: tudo o mais lhes
é supérfluo. Em geral, chamam-se uns aos outros irmãos quando da mesma idade;
aos de idade inferior dão o nome de filhos; e os velhos são por todos os outros
apelidados de pais. Deixam aos herdeiros a plena posse em comum dos seus bens
indivisos (…).
Nestas paragens têm
os homens diversas mulheres, e têm-nas em tanto maior número quanto de melhor
reputação de valentia gozam. E é de assinalável beleza que, nos seus
casamentos, o mesmo zelo que as nossas mulheres põem em impedir-nos o amor e o
favor das outras mulheres, põem as deles em obtê-los para eles. Mais
preocupadas com a honra dos maridos que com qualquer outra coisa, elas
procuram, nisso se empenhando com toda a solicitude, ter o maior número de
companheiras possível, pois isso é uma prova do valor dos maridos (…) Três
desses homens (…) estiveram em Ruão (…) alguém lhes perguntou (…) quais as
coisas que mais os tinham impressionado (…). Disseram (…) que achavam muito
estranho que um tão elevado número de homens grandes (…) fortes e armados, que
rodeavam o rei (…) se submetessem a um menino e lhe obedecessem, em vez de
escolher um de entre eles para o comando, e, em segundo lugar, que tinham
reparado que entre nós havia homens cheios e repletos de todas as comodidades
ao passo que as suas metades (…) mendigavam às suas portas, escanzelados por
causa da fome e da pobreza, e que achavam estranho que estas metades pudessem
suportar uma semelhante injustiça e que não se atirassem aos gorgomilos dos
outros e lhes incendiassem as casas."
Montaigne (1533-1592), Dos
canibais in Ensaios, pp.115-130,
Lisboa, Relógio d’Água, 2016.
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