O que é a ideologia?
À ideologia enquanto conceito pode aplicar-se o dito
augustiniano sobre o tempo: “se não me perguntarem o que é, sei; se me
perguntarem não sei.”
Conjunto de preceitos
para a vida social, capazes de facilitar uma integração? Com o necessário risco
de exclusão, pois nem todos podem incluir-se na ideologia desejada, abençoada.
Determinam comportamentos, até ao extremo nalguns casos. O seu poder é tal que
“…para Isaiah Berlin, o desenvolvimento das tecnologias e das ciências, e as
grandes tempestades ideológicas são os dois factores decisivos da história do
século XX” (Ball). Pergunta: continuará o século XXI a ser marcado pelas
ideologias? Até ao momento podemos dizer que sim, pelo menos aparentemente. Uma
das ideias que se repete constantemente é a da falência dos chamados partidos
do centro. No entanto, se isso parece ser verdadeiro, tal não significa o fim
das ideologias, pois as mesmas não se esgotam em tais movimentos (até certo
ponto despojados frequentemente de carga ideológica em prol de um pragmatismo governativo).
Além disso o presente século tem assistido à emergência de novos actores ou ao
aparecimento de outros, dos quais o mais visível é, até à data, o do islão
político. Podemos enquadrar este na categoria de ideologia? No sentido em que
pretende exercer um controlo sobre todos os aspectos da vida comum, dos mais
íntimos aos partilhados no espaço público, parece não deixar grande distância
face a outros totalitarismos do passado. De resto, vimo-lo em acção juntamente
com eles, em diversas ocasiões, desde a segunda guerra mundial em que as forças
nazis criaram uma divisão bósnia muçulmana, a Handschar (além de outros contactos),
às operações de cooperação entre neonazis alemães e palestinianos por alturas
dos anos setenta (embora aqui os movimentos palestinianos fossem laicos, como
era o caso da FPLP, do cristão George Habache ou a FPLP-CG, de Ahmed Jibril ).
Também o marxismo não
se encontra enterrado e o liberalismo democrático não é, certamente – pelo
menos por agora, o presente e o futuro da humanidade. A história não acabou e
os actores ideológicos vão continuando em cena, por vezes sob novas vestes (ou
não tão novas quanto isso), veja-se o marxismo cultural. Novos avatares talvez
seja mais correcto. É a tal dinâmica das ideologias, a sua capacidade de
adaptação a novas circunstâncias, e a capacidade de criar essas circunstâncias.
Etimologicamente, portanto, ideologia enquanto estudo das
ideias não chega (sentido original de Destutt de Tracy ), tal como não chega
definir filosofia como amor à sabedoria. A etimologia não é suficiente em
muitos casos.
Por isso precisamos
então de compreender as quatro funções de ideologia, como no-las apresenta
Ball:
a) explicação: porque são as coisas como são, a nível social,
político, económico. Precisamos de dar sentido às coisas, o que pode levar a
uma simplificação excessiva.
b) avaliação: “estabelecer padrões para avaliar as condições
sociais”. As ideologias oferecem padrões que ajudam as pessoas ao julgamento,
ainda que este possa não ser o mais correcto.
c) orientação: “fornece aos aderentes uma orientação e um
sentido de identidade.”. Localização, portanto, num mundo onde essa identidade
é, tantas vezes, secundarizada.
d) programa político: “diz aos seguidores o que fazer e como
fazê-lo, oferece um programa de acção”. Diagnostica o que está mal, necessita
de um programa para o corrigir.
Mas, apesar disto, a ideologia” não é uma teoria científica”
(Ball), embora as ideologias recorram frequentemente a teorias científicas para
se legitimarem, ou pelo menos a parte dos seus programas. As teorias
científicas têm uma base empírica, descrevem a realidade. Foi por não estar
assente nessa base, por desvirtuá-la, substituindo-a pela ilusão ideológica que
certos projectos falham – veja-se o caso Lyssenko.
Esta definição funcional permite distinguia a ideologia de
outros ismos, pois nem todos o são. E ajuda também a distinguir a democracia de
ideologias,” pois esta ao contrário de ideologias de facto não oferece
explicação acerca do porquê das coisas.” (Ball)
A definição funcional
ajuda também a clarificar o que é ideologia, eliminando possibilidades (O que
não cumpre as quatro funções).” (Ball). Mas a teoria política também pode
apresentar estas quatro funções, a um nível mais abstracto, superior, como na
República de Platão ou no Contrato Social de Rousseau.
Como estas, as teorias, são mais complexas e elaboradas,
levam menos gente à acção.” A ideologia acaba por simplificar para tornar mais
acessível.” (Ball) Logo, distorce?
Problema similar da religião. A maior parte oferece
programas aos seguidores. Será que isto faz delas ideologias? Ou simplesmente
“religiões políticas”, na expressão utilizada por Eric Voegelin?
Parece, pois,
complicado definir ideologia. Eagleton acentua a ideia, ao dizer-nos que não
existe uma definição única, antes várias, algumas sendo incompatíveis, sendo
que envolvem questões epistemológicas e filosóficas complexas. Tal aspecto é
também assinalado por Freeden, o qual reflecte acerca do estatuto
epistemológico do conceito, considerado “o problema original da análise
política”.
Ao entrarmos neste campo,
o da epistemologia e do estatuto da ideologia relativamente ao mesmo,
coloca-se-nos a questão da crença, referida por Eagleton quando afirma que “o
termo ideologia parece fazer referência a sistemas de crenças e a questões de
poder, derivando daí a necessidade “de uma definição mais ampla, algo como uma
intersecção entre sistema de crença e poder político”. No entanto, esta
expansão do termo não arrisca uma desvalorização e descaracterização do termo?
Até porque “a maior parte do que as pessoas dizem sobre o mundo deve ser
verdadeiro “ (Davidson). Portanto, a maior parte das crenças, ou pelo menos do
seu conteúdo é verdadeiro, mas isso não faz dele ideológico, pertencente a uma
ideologia. A ideologia pode ter elementos de crença (sem ser conhecimento, naturalmente),
mas nem toda a crença é ideologia. Em que ficamos, então?
Para já, numa definição aparentemente simples e abrangente:
“A ideologia é uma concepção ou representação do mundo e da vida que inspira e
legitima o poder e os seus fins e a organização da sociedade em função desses
princípios.” (Pinto, 2013). E voltamos à relação entre ideologia e poder.
Bibliografia:
Ball,
Terence et al, Ideology and Ideologies, in Political Ideologies and the
Democratic Idela, New Jersey, Pearson Education, 2014, pp.1-8
Eagleton, Terry, O que é Ideologia? in Ideologia: uma
Introdução, São Paulo, Boitempo Editorial, 1997, pp.15-40.
Freeden,
Michael, Ideology and Political Theory, Journal of Political Ideologies, 2006
11:1, pp.3-22
Pinto, Jaime Nogueira, Ideologia e Razão de Estado, Porto,
Civilização Editora, 2013
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