Descartes na Sua Época

 

A época em que Descartes vive é marcada, filosoficamente, pelo cepticismo. Nomes como Montaigne, Francisco Sanches, Pierre Charron, entre outros, popularizaram esta escola de pensamento. As razões do seu sucesso são múltiplas.

 Na sequência do Renascimento e da redescoberta e releitura de textos clássicos, os de antigos filósofos gregos são naturalmente estudados. Entre eles encontram-se os dos cépticos. A sua filosofia parecia especialmente capaz de aplicação à época moderna, sobretudo em virtude da recomposição que se fazia sentir na Europa. Essa recomposição tinha, essencialmente, três vertentes.

 Em primeiro lugar, no campo religioso, viviam-se os ecos da Reforma protestante. Até ao século XVI, apesar da divisão entre ortodoxia e catolicismo, a maior parte do continente permanecia fiel ao segundo. Com a Reforma ocorre o estilhaçamento da unidade religiosa, embora as dissidências não fossem algo de absolutamente novo. Antes já houvera contestação à unidade católica, embora tivesse sido superada.

 Desta vez, porém, a cisão veio para ficar. E, mesmo entre aqueles que se separaram da via católica, a discórdia vai ser contínua. Da homogeneidade conferida pelo catolicismo passamos a uma heterogeneidade em que se digladiam católicos, luteranos, calvinistas, presbiterianos, anglicanos e muitos outros que posteriormente surgirão. Face a este cenário é natural que se instale a dúvida e grasse o cepticismo. Quem tem razão, afinal? De que lado se encontra a verdade? Será possível alcançá-la, seja no plano religioso ou filosófico?

 Em segundo lugar a saga dos Descobrimentos viera oferecer aos europeus toda uma enorme variedade de costumes e culturas. Perante essa realidade, á curiosidade junta-se o relativismo, a ideia de que as diferentes formas culturais são igualmente legítimas e que não existe nada de especial no ponto de vista eurocêntrico. Montaigne tem aqui um papel essencial na divulgação da mensagem, dando início a um processo que encontrará seguimento no iluminismo e posteriormente, como nomes como Voltaire ou Montesquieu.

 Outra razão de peso para o cepticismo tem a ver com a reconfiguração do Cosmos operada por aquela altura. Utilizando a expressão que deu título à obra de Alexandre Koiré, encontramo-nos na passagem do Mundo Fechado ao Universo Infinito. O quadro do geocentrismo viu-se progressivamente substituído por um cenário em que o heliocentrismo é rei. Nesse processo encontramos Descartes, ao lado de nomes como Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu, Digges, entre outros.

 Se, outrora, o ser humano era o centro do Cosmos, agora encontra-se num ponto indefinido no mesmo, criatura insignificante á qual o “silêncio eternos dos espaços infinitos aterram”, na conhecida expressão de Pascal. Obviamente, esta mudança de perspectiva é de molde a lançar alguns espíritos na confusão e na dúvida. Que lugar nos cabe agora? Como situar-nos neste novo universo?

 É, portanto, um período de reconfiguração, aquele que antecedeu Descartes e no qual o próprio vive. Não se esqueça o início, em 1618, da grande conflagração da Guerra dos Trinta Anos, conflito activo durante a idade adulta do filósofo francês.

 Neste cenário de cepticismo e relativismo Descartes propõe-se um objectivo, o de encontrar uma base sólida na qual possa assentar o conhecimento. Uma base sólida, absolutamente inatacável, imune a todas as dúvidas e a todas as suposições dos cépticos. Para tal utilizará essa dúvida, mas nela não permanecerá. A sua dúvida, o seu cepticismo, será instrumental, mas com vista à superação da discórdia em que se encontra a filosofia, e o conhecimento em geral, há séculos. Com a dúvida como método a primeira pedra do edifício do conhecimento será alcançada.

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